Pablo Bucciarelli, Adventure Camp 2011, São Luiz do Paraitinga

Pablo Bucciarelli, Adventure Camp 2011, São Luiz do Paraitinga

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A Experiência

Pintura de Pablo Amaringo (1938-2009), pintor e professor de arte na sua escola Usko Ayar em Pucullpa, Peru
No segundo semestre de 2013, entre altos e baixos, conheci uma comunidade alternativa, independente e autossustentável, no sul do Brasil. Ao ingressar num dos templos, bem simples diga-se de passagem, senti uma energia boa no ar, fui me harmonizando com o ambiente e percebi algo familiar. Senti as vibrações da montanha, do círculo de fogo de ancestrais indígenas, me sintonizei com as orações espiritualistas sem apego ritualísticos ou dogmas de alguma religião pré-estabelecidas e, sobretudo, senti bater muito forte um desejo de trabalhar mais a fundo as mazelas que sinto existir dentro de mim.

Nesse artigo publico um relato escrito logo após meu reestabelecimento vindo de um longo transe de cinco horas, quando senti a criatividade aguçada, ainda com as lembranças latentes daquela experiência, que considero um divisor de águas na minha vida, pois o esclarecimento trouxe o poder da decisão, que os ignorantes não têm. Costuma-se dizer que a ignorância é o berço da cegueira; e a cegueira, o berço da felicidade. No entanto, aprendi a encarar a realidade de frente desde que meu pai morreu em 1989, quando tinha apenas 14 anos. A notícia, na ocasião, foi dita sem rodeios por um amigo de meu pai, quando acabara de acordar, ainda deitado na cama. Na noite anterior meu pai havia sido internado na UTI de um hospital do bairro por problemas que já enfrentava há alguns meses. Enfim, a partir desse momento, todas as dores e frustrações que vivi nesses quase 25 anos que se passaram me remetiam à passagem de 3 de abril de 1989.

“Amanhã será melhor. Um chamado silencioso desse gênero merece um testemunho emocionado. Não podia imaginar para onde Deus estava me guiando quando me afundei em sentimentos de sofrimento e perda. Poderia ter seguido caminhos obscuros e sem volta, causando uma ruptura maior e definitiva, mas o silêncio se fez prevalecer para que o espetáculo ainda tivesse um segundo ato. De repente diante da possibilidade de cura, me entreguei, aromas, paladares, sentidos aguçados buscando o desconhecido. Fé, esperança, medo, insegurança, talvez sua mistura formassem o caldo grosso diante dos meus olhos. Impossível acreditar que estaria ali há algumas semanas. A cura diante dos meus olhos. Qualquer prognóstico seria mera especulação. Seria? E foi.

Yin-Yang, simbologia do equilíbrio entre os opostos. E foi exatamente isso que iria enfrentar naquela imersão, uma verdadeira batalha astral. No início vi as trevas. Pude experimentar diante dos meus olhos o mal que já causei ao próximo, o próximo mais próximo, senti o mesmo medo, o mesmo ódio, o mesmo terror, o pânico foi extremo, não conseguia mirar ao lado, meus olhos reviravam, minha boca secou, meu estômago embrulhado, meus músculos tremiam, era o frio tomando conta de mim, fogo, olhos vermelhos, trevas. Pude experimentar tudo aquilo que deferi àqueles que maltratei, àqueles que a mim zelaram confiança e respeito, dedicaram amor. Me questionei. Sou eu? Busquei apoio. Veio meu pai, sereno, me abraçou. Olhou-me e sorriu, me beijou. Trocamos olhares, estava perdido, estava aflito, deprimido e ao mesmo tempo querendo fugir. Coração pulsando, quase enfartando. Roguei por todas as forças do bem, e por um tempo perambulei sozinho, enfrentando a fera, cara a cara, olhos nos olhos. Tive medo, mas uma frase a mim dirigida recentemente me sustentava: "Aprenda com você mesmo, seja seu professor, seu crítico, seja fiel a você mesmo". Fui trazido de volta às luzes. Orações, cantos, chocalhos, cordas e tambores... Uma flauta doce. Recebi apoio, mas não sai do transe. Sim, recebi apoio, de todas as entidades e forças ali presentes. Busquei apoio num fio de lucidez que ainda emanava da crença que tenho nas minhas origens. À gênese voltei, me vi um golfinho nascendo, renascendo. A placenta protegida por uma áurea azul, quase da cor do mar, fluorescente. Uma benção que me aquietou.

O cântico alto preenchia o tempo e o espaço e nele me refugiei:

Aho, aho, aho Grande Espírito
Ecoou pela montanha
Até o espaço infinito

Aha, aha, aha minha Mãe Terra
Mãe de todas criaturas
Todas que habitam nela

Raiou, raiou, raiou, raiou o dia
Bate o tambor, Dança do Sol
Meu coração sente alegria

A noite ainda nem começara e tive que suportar uma pressão avassaladora, um medo terrível. Orações, meditação, escuridão, apenas as chamas da fogueira, o cheiro do incenso, mas a movimentação era grande. Constantes limpezas coletivas. Catarse. Tentava me concentrar e manter um laço de consciência, mas às vezes flutuando, às vezes saindo do corpo. Medo de não voltar. De repente a lucidez veio maior. A luz acendeu e ascendeu. Cantos, hinários, orações, força que vinha para serenar, mas ainda em transe. Sentia que algo mudara, mas ainda era pouco, e a noção do tempo foi totalmente perdida.

Humildade para admitir que estava diante de uma experiência única, sem precedentes, entregue de corpo e alma. Deixei que fosse guiado para onde quer que fosse, pois precisava da cura e do aprendizado, do autoconhecimento, precisava suportar todas as dores para que viesse a conversão, pois o mal já havia sido consumado. Precisava entender do que sou feito, de onde vim e para onde vou. Onde estou? Precisava sentir as mesmas dores alheias que havia semeado para suportar o drama e tentar revertê-lo. De repente, uma segunda dose. Duas doses altas de ânimo, uma oração antes e ... sentia descer amarga, mas limpando a alma. Prossegui meu trajeto até meu assento, meu aconchego, meu porto seguro. Foi então que outra dimensão se abriu diante de mim. Pude ver que a mente corrompia a alma. Estava ainda envolto do mal que vive impregnado no mundo externo, na coletividade, no subconsciente, nos dramas passados dos outros e da minha história.

Uma luz brilhava na minha fronte, senti o aroma de flores, senti que o corpo já não era obstáculo. As náuseas passaram e tive certo controle. Mas as alucinações se fizeram mais fortes. Deixei-me ser conduzido, pois senti vibrações de fé e amor, fui seduzido pela paz e um caminho se abriu. Passei um tempo sob o anacronismo, mas diante da visão do amor, sorria, chorava de alegria, como que abraçado por uma bondade colossal, que me deu respostas, respostas íntimas, respostas esclarecedoras sobre quem sou, onde estou e para que estou. Senti medo, vi a raiz do preconceito que ainda resta nos homens e em mim, pois a mente ainda estava presente, obstruindo o fluxo. Mas era o equilíbrio das forças de forma bruta, compacta e dilacerante que estava sendo colocado à prova. Conseguia com um esforço desumano suportar o frio. O fim estava próximo, mas não entendia como o amor e a morte podiam habitar o mesmo ambiente. De repente o amor vinha em forma de um sorriso familiar. Estava sendo amparado por ele, que vinha na minha direção em saudação, como que conferindo se estava no rumo certo. Às vezes percebia forças ruins me puxando, mas a fé e a vontade eram tão grandes que nada me tirava a concentração sobre minha própria experiência.

Às vezes precisava de ajuda, buscava com o olhar faces conhecidas, apoio para suportar o frio que aumentava, frio interior, não havia proteção que fizesse efeito. Imagens dos meus rebentos vinham à tona quando sentia que o medo e o frio cresciam e a lucidez me escapava. Queria estar de olhos abertos. Ao fechá-los me deparava com a loucura. O perdão veio num dos momentos mais ricos de alegria e amor. Meu autoperdão veio como cura, para prosseguir o caminho. Veio também a certeza de quem sou, e que meu pacto é com o bem. Veio a certeza de que estava diante de uma revelação. A missão foi dada há tempos, já tinha essa sensação, uma impressão tênue, mas agora estou seguro que a tenho sob controle em minhas mãos. A mim foi confiado muita coisa, sinto a responsabilidade, e o amor é o instrumento de execução para que a missão tenha um fim. Amor, puro amor, amor, amor...

Sentidos aguçados, visão concatenada em várias dimensões, aromas correndo pelas vias aéreas, os músculos saltando visivelmente, os sons estridentes com ecos em todas as direções. Novamente sou levado, levito, por qualquer caminho, sinto inúmeras emoções a flor da pele. Medo, fome, sede, dor, frio extremo, calor, angústia, uma mistura de tudo ao mesmo tempo, e de repente uma seringa penetra minha nuca por mãos bondosas. De certo uma manifestação anímica. Agradeci a dose com o olhar submisso. Não entendia nada, mas entendia tudo. Flutuava entre o saber e o desconhecer. Caminhava adiante. Meus laços com o bem eram fortalecidos, e a correspondência com o amor me conduzia para ter a confiança mínima diante da missão a mim confiada. Sinto que tenho um grande desafio de superação a fazer. Fui colocado diante de dilemas pessoais, um a um, pude dialogar com eles. Pude encarar o mal. Suportei docilmente, sem arrogância, com o desespero velado, ainda que o tinhoso estivesse ali presente. Fui corajoso, senti orgulho, me olhei de frente sem a vergonha de ver a face obscura. Mas olhei-me com bondade, porque vi uma doença prestes a ser aniquilada. Se não foi ainda, será, pois assim reina a vontade, a minha vontade.

Calado, mas em pensamento cantando, movendo os braços, arranhando as pernas, pois o frio era intenso, no alto de uma montanha me avistei integrando uma tribo. Via-me como parte daqueles respeitáveis índios. Comecei a marchar, bradando seu hino, estufando o peito e feliz com um sorriso de guerreiro pronto para a batalha. Vou vencer, pensei, esse era o sentimento, uma vitória anunciada se manifestava contra o lado escuro que reside em minh’alma. A dança se intensificava, o calor estava apenas no desejo, porque no alto daquela montanha nevada meus pés estavam congelados. Trêmulos, estavam trêmulos meus membros inferiores. Mas continuei marchando, porque tenho uma missão, é um caminho sem volta. Estava focado nos laços com o destino que está reservado para mim. A visão estava clara, e o pajé me olhava com firmeza, passando confiança, e me fazendo acreditar que sou capaz. Senti uma onda de força numa magnitude capaz de me fazer explodir em alegria. Um amor colossal vinha de dentro, mas me contive, pois minha vontade era pular, gritar, havia me encontrado dentro do caos. Queria agradecer, queria festejar, queria chorar, precisava me manifestar, mas consegui conter o impulso e a postura foi mantida. Com respiração ofegante, mas o alinhamento sempre presente. Coluna ereta, cabeça erguida, pés e mãos alinhados, concentração naquilo que buscava, o autoconhecimento.

Amor, sim. A resposta para tudo. Sem dúvida, o aprendizado estava assimilado. Mas as forças eram mínimas, não entendia porque a morte, representada pelo frio interior, ainda tomava conta e crescia. Porque tenho que me entregar, por quê? Queria viver para dar continuidade, mas Deus estava presente, então confiei. Me entreguei. Não me lembro de tudo, faíscas de consciência me ligavam à vida, mas o transe foi soberano, me conduzindo à mensagem sagrada. A morte foi necessária, ela foi boa, não houve ruptura. A morte foi sinônimo de renascimento. A morte foi minha conversão. Quando voltei à vida, vi que um aprendizado transcendental de ordem cósmica e de profundidade infinita ocorrera dentro de mim. Chorei com alegria por ter visto o rebento de um novo ser. O amor próprio cresceu numa curvatura gigantesca, como uma árvore patagônica brotando sob meus pés, mais ainda, como uma aeronave extraterrestre viajando a todos os continentes à velocidade da luz. O universo é grande e infinito, mas o amor próprio que nasce humilde, servindo de base para a missão que se faz presente, foi uma sensação de dimensão indescritível. Fui agraciado pela Providência, e a libertação do mal veio como uma dádiva pela persistência, pela busca e a coragem de atravessar a fronteira. A síntese de tudo isso está na confiança que hoje tenho sobre meu rumo. Agora, devo seguir a vida real, com todas as consequências geradas pela negatividade que disseminei. Mas, de outra forma, agora tenho a ferramenta mais importante no coração, o amor maior, próprio e ao próximo. O que foi perdido não se recupera mais, mas o que pode ser reconstruído só depende de mim. Vamos à luta.”

Pablo Bucciarelli
15/7/2013
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